Meretrizes felizes e outros deslizes
17
de junho de 2013 -
Autor: Eugenio
Bucci
“Eu
sou feliz sendo prostituta.” Com esse slogan singularíssimo, o
Ministério da Saúde cometeu uma de suas gafes mais destrambelhadas.
A frase alegre ilustrou um cartaz que foi ao ar pelo site do
ministério, com a intenção oficial de estimular o uso de
preservativos nas relações sexuais das garotas de programa – uma
campanha saudável,
por certo, mas um tanto sem pé nem cabeça. O que a camisinha tem a
ver com a felicidade da profissional do sexo? Será que enaltecer a
autoestima das meretrizes aumenta o índice de sexo seguro? Por fim,
é legítimo empregar o dinheiro público
para difundir a tese de que a prostituição traz a felicidade?
Não
sem motivo, “Época” qualificou de “propaganda enganosa” a
investida publicitária do Ministério da Saúde. Quanto ao titular
da Pasta, Alexandre Padilha, agiu rápido. Antes mesmo das reações
mais negativas, mandou tirar o cartaz do site. Houve demissões,
punições, resmungos e, como sempre, o mal-estar se dissipou
rapidamente, como as nuvens no céu de inverno. A saúde pública no
Brasil segue onde sempre esteve, bem longe da zona do meretrício –
para o bem e para o mal. E as perguntas mais graves que o episódio
poderia suscitar não foram feitas.
Tratemos
de fazê-las. Por que, no Brasil, o Estado acredita que pode ditar o
modo de vida dos cidadãos – ou, mais especificamente, das cidadãs?
Quem é a administração pública para apregoar ou incensar a
alegria interior de garotas de programa – ou de padres, de
sargentos, de punks ou de quem quer que seja? Quem é o Estado para
prestar serviços de aconselhamento sentimental sobre os caminhos e
descaminhos da realização pessoal de cada um?
As
respostas não são indolores. Para começar, temos de admitir o
seguinte: diante dos excessos permissivos da publicidade oficial no
Brasil, falar bem de prostitutas é o de menos. Ou, no mínimo,
deveria ser o de menos. A propaganda de governo é um jorro
incessante de fortunas, inundando com bilhões de reais o mercado
publicitário brasileiro. O objetivo é sempre o mesmo: promover o
sorriso fácil dos governantes. O mandamento que essa publicidade
maciça vem ensinar é um só: amar o governo acima de todas as
coisas. A máquina de propaganda pública tenta provar que são
excelentes hospitais degradantes; tenta nos convencer de que aquelas
escolas imundas, que humilham as crianças, têm padrão de “primeiro
mundo”; e que governam com seriedade aqueles tipos que, no ano
seguinte, são condenados por corrupção.
Diante
dos excessos permissivos da publicidade oficial no Brasil, falar bem
de prostitutas é o de menos
Diante
disso, francamente, qual o problema de falar bem das prostitutas? A
publicidade oficial não se cansa de idolatrar gente tão pior, tão
mais desonesta do que elas, que nós deveríamos até aplaudir o
cartaz do Ministério da Saúde. Se dizemos amém para o gasto do
Erário na promoção de autoridades que praticam crimes de
responsabilidade, por que nos escandalizamos tanto quando um site
estatal fala bem de quem aluga o corpo para deleite do freguês?
“Eu
sou feliz sendo político.” Assim poderiam vir assinadas todas as
peças de propaganda de governo – e nenhum de nós iria lá
protestar, com pruridos de guardião dos bons costumes.
Do
cartaz infeliz do Ministério da Saúde, pode-se dizer que ele entrou
no ar pelos motivos errados e saiu do ar por motivos mais errados
ainda. Entrou no ar porque alguém no ministério pensou em fazer uma
média com a nascente organização sindical das prostitutas –
organização que precisa de respeito, não de afagos eleitoreiros. E
saiu do ar porque as autoridades cederam a argumentos moralistas,
como se toda prostituta fosse necessariamente uma infeliz, uma
derrotada.
É
claro que as prostitutas também têm direito à felicidade. Algumas
até a encontram. Se o nexo entre felicidade e prostituição não é
obrigatório, também não é impossível. O cartaz infeliz nunca
deveria ter se transformado em peça oficial do ministério, não por
motivos demagógicos ou moralistas, mas por um imperativo de ordem
democrática: não é papel do Estado dar selo de aprovação ou de
reprovação a nenhum modo de vida. Se as cidadãs são virgens ou
devassas profissionais, isso não é da conta do governo.
Mas
esse argumento jamais será aceito pela escola da multibilionária
propaganda governamental. Ela acredita que pode e deve induzir na
sociedade comportamentos ideológicos, partidários, fiscais e até
mesmo sexuais. O cartaz da prostituta exultante é só mais um caso,
só mais um entre milhares de outros. Dentro da história imoral da
propaganda de governo no Brasil, a parte mais limpa são as
meretrizes. Felizes ou infelizes.
Fonte:
revista “Época”
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